O fio das missangas – Mia Couto
(Publicado originalmente em 2004)
A primeira vez
que ouvi falar de Mia Couto foi quando tentei prestar vestibular para
Jornalismo, no fim de 2007. Precisava ler O último voo do flamingo, um
dos livros da grande lista de livros e filmes requeridos pela Cásper Líbero
(sim, tentei passar no vestibular da Cásper; não, não fazia ideia do preço da
mensalidade), mas lembro que, na época, não consegui encontrar o livro em lugar
algum. Encurtemos a história: não li o livro, não passei no vestibular para
Jornalismo (o que foi até bom, pois entrei em Letras anos depois) e esqueci o
porquê dessa área me interessar tanto, porém nunca esqueci o nome desse autor;
talvez, porque tenha pensado se tratar de uma autora. O fio das missangas
foi minha primeira experiência de leitura com o escritor moçambicano.
Experiência esta que espero repetir com outros de seus livros.
O fio das
missangas é um livro com 29 contos breves como a vida. É um livro rápido e
delicioso de ler. Cada conto está transbordante de humanidade. Digo está,
e não é, porque o livro combina melhor com a sensação de
transitoriedade, de movimento, de fugacidade provocada pelo verbo estar.
O universo feminino, seus desencontros e desafios, está retratado em diversos
contos, mas a vida é que é o mote do livro. Não há nada mais aparentemente
simples do que escrever sobre a vida, entretanto, acredito que não há
nada mais complexo do que escrever a vida, fazê-la pulsar nas alvas
folhas de papel, sem reduzi-la a um esboço de representação ou a um festival de
prolixidade e sentimentalismo. Mia Couto é desses raros casos de escritores que
fazem a vida pulsar no papel com simplicidade. Confesso que me apaixonei muito
mais pelo estilo de Mia Couto do que pelas narrativas propriamente ditas,
embora sejam todas incríveis. Sua escrita possui um misto de fluido, etéreo e
lírico que é encantador e nos faz querer ler mais. Como a Juliana Gervason –
que logo mais reclamará o posto de minha sócia nesse blog, de tanto que comento
sobre ela – escreveu, os livros do Mia Couto nos escolhem, não nós que os
escolhemos.
Preciso
parabenizar a Companhia das Letras por manter a ortografia utilizada em
Moçambique, pois, do contrário, as narrativas perderiam parte de sua carga poética.
Da mesma forma que elogio o bom-senso da editora, preciso fazer duas críticas
construtivas:
1 - Os preços dos livros do Mia
Couto aqui no Brasil são salgados demais!
Isso dificulta
muito o acesso aos leitores, visto que nem todos têm como dispor de R$ 35,00 a R$ 50,00 de seus salários em um único livro de aproximadamente 200 páginas.
Pelos materiais utilizados – além do motivo que apontarei abaixo – haveria a
possibilidade de baixar os preços;
2 - As encadernações precisam ser
tratadas com mais cuidado!
Adquiri meu
exemplar na Livraria Cultura e todos os exemplares disponíveis de O fio das
missangas tinham algum tipo de defeito na encadernação. Sim, fui chata o
suficiente para olhar todos os exemplares com muita atenção. O meu exemplar, o
menos defeituoso de todos, está com os cadernos desalinhados na base – eles
foram claramente cortados depois, para se ajustarem à capa – e faltou cola na
lombada, o que dá a impressão de que, com o tempo, ele irá descolar. Pagar
R$38,00 por um livro cuja encadernação foi tão descuidada? Acho que essa
experiência não se repetirá. A editora obteria maior êxito se cuidasse mais
atentamente do processo de encadernação de seus livros, afinal, nenhum cliente
sente gosto em comprar um produto que apresenta defeitos; com os livros não é
diferente.
Apesar dos dois problemas aqui
levantados, o livro é excelente. Senti o chão fugir de meus pés diversas vezes
e refleti demais com a simplicidade das vidas narradas nos contos. Demorei para
eleger um favorito, porém, agora que o escolhi, sinto como se não pudesse ter
escolhido melhor. Compartilharei com vocês o conto O menino que escrevia
versos apenas para vocês sentirem o gostinho de algo escrito pelo Mia
Couto:
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...
Somente um comentário:
ResponderExcluirNão pare, Mila. Continue escrevendo... ^^
É exatamente isso que eu pretendo, Carlos ;3
ExcluirSomente um comentário: Continue lendo. Gosto demais dos seus comentários no meu humilde blog x3
Mil beijos!
ótima resenha. Amo Mia. Obrigada.
ResponderExcluirEu que agradeço pela visita e pelo comentário, Gerusa!
ExcluirAcho que também me apaixonei por Mia Couto. Espero ler mais coisas dele em breve...
Beijoos!!!
Muito bom e muito enriquecedor! Não li nada do Mia Couto (bom,agora li um conto dele!). Camila, mais uma vez, você escreve divinamente! "Sua escrita possui um misto de fluido, etéreo e lírico que é encantador e nos faz querer ler mais." ;)
ResponderExcluirNa espera de muito mais resenhas feitas por você!
Obrigada pelo elogio, Leo! Ainda acho que tenho muito a aprimorar na minha escrita, mas fico feliz demais que você goste do meu blog e das minhas resenhas x3
ExcluirQuando tiver a oportunidade, leia mais coisas do Mia Couto (quero fazer o mesmo). Tem algo na forma que ele escreve que é quase mágico!
Beijos e no aguardo de mais visitas suas por aqui x)
Ajudou pra minha prova de amanha. obg.
ResponderExcluirBoa tarde! Amei, concordo com todos os comentários a respeito da escrita que nos envolve a todo instante, fazendo querer que não acabe. Beijos!!!
ResponderExcluir